Faaaaala!
Bom, vou falar de mim. Eu estou bem. Nenhuma novidade médica! Só o de sempre: precisando engordar. Estou engordando muito devagar, ainda. Fiz um exame pra ver um lance do pâncreas que, dependendo do resultado, pode dar umas dicas de algo que ajude a desacelerar o funcionamento do intestino – note bem, essa é uma forma educada de me referir a esse singelo problema de ir várias vezes ao banheiro!
Mas aqui dentro está tudo certo. A cada vinte dias eu faço exames de rotina. De resto, estou procurando retomar minha vida. Como não pretendo mais trabalhar em agências de publicidade, tenho procurado oportunidades no Terceiro Setor. Minha idéia é trabalhar na área, aprender bastante pra me preparar pra abrir a minha ONG, num futuro próximo! Por enquanto, estou trabalhando como voluntário do Instituto Canguru - http://institutocanguru.org.br/. Estou desenvolvendo um projeto de captação de recursos pra eles. É um baita instituto, com um trabalho muito importante e bem feito. Muito legal poder fazer esse trabalho.
Quando fui no astrólogo, três anos atrás, logo após a primeira etapa da epopéia, ele disse que, pra minha vida até então, eu tinha morrido. Eu entendo e concordo. Aquela vida que eu tinha, da forma que era, das prioridades, dos sonhos, essa acabou. E eu penso que estou recomeçando. Do zero, mesmo. É doido, isso!
E é isso que estou vivendo, de forma geral. Eu estou num momento de reconstrução, de restabelecer uma estrutura que desmoronou com o tempo. Volto a fazer coisas que eu gostava, mas esqueci, até, como eram. Estou descobrindo outras formas de passar o tempo. Perdi o costume, eu acho, de muito do que eu fazia, do que ocupava meu tempo. Por exemplo, se eu não me mexer, acabo ficando muito tempo em casa. Não tenho mais aquela vontade toda de sair. Lembro que, se alguém quisesse fazer alguma coisa, qualquer coisa, era só me ligar. Já sabia a resposta. Na verdade, eu não conseguia ficar muito em casa. Ficava ansioso, procurando alguma coisa pra fazer. Eu era tão agitado, que me incomodava até de ficar no bar. Quando encontrava o pessoal no Samaro, não sossegava enquanto não convencesse alguém a ir pra alguma baladinha. Até ficar num bar, pra mim, era meio que perda de tempo. Eu falava muito: “meu, vai gastar uma grana aqui, gasta em algum lugar que tenha um som e tal...” Eu tinha até raiva do Samaro! Pensando bem, eu devia ser meio pentelho até... Os caras querendo tomar uma cervejinha tranquilo e o zé baladinha aqui botando pilha, né! heheh
Mas não acho essa minha... sei lá, acalmada, boa, nem ruim. Depende do ponto de vista, ué! Quando tem algum aniversário e eu estou meio de bode, sinto falta daquela energia toda que eu tinha. Eu chegava do trampo tarde, tirava um cochilo de uns quarenta minutos e saía. Ficar em casa e descasar, não fazia sentido. Mas, ao mesmo tempo, depois de tudo o que aconteceu na minha vida, tanta informação, é bom eu fica mais introspectivo, as vezes. Não dá pra absorver, e retomar praticamente do zero, saindo todo dia. Preciso ficar mais voltado pra dentro, mesmo, né!
Eu não consigo ver, em mim, quase nada do que eu era. Sinto que, se eu tentasse agir daquela forma, seria forçado. Por isso que eu fico meio confuso. Me sinto bem com coisas que, em alguns momentos, não queria gostar. Quando decido uma coisa, muitas vezes fico pensando que não deveria querer assim. É como se eu tivesse mudado, de vez, mas ainda não absorvi essa mudança. Uma parte ainda funciona como antes, parece. Essa configuração parece incompatível comigo, hoje. E eu não sei direito onde começa a mudança e onde eu ainda sou o mesmo. E falando assim parece papo de doido. Mas é a forma de falar. Não é que eu não me reconheça nos meus atos, que seja controlado por uma força maior! Heheh Claro que não! É só que, as vezes, me dá essa sensação estranha, de estar rolando uma pequena disritmia, aqui. Sei lá, não sinto tudo naturalmente. Demoro a decidir o que fazer em coisas simples... É um querer ou não querer mais complicado de decidir. As vezes me dá vontade de algo e, ao mesmo tempo, eu me pergunto porque tive essa vontade. Vejo coisas que achava legal antes, mas agora não acho e me sinto estranho em relação a isso. Bom, é bem atrapalhado, mesmo. Acho que ainda não aceitei, totalmente, o que eu me tornei. Mas sem drama. Não no sentido de não me conformar. É que eu não entendi direito. Ainda. Mas claro que, numa conversa, eu estou lá, como o que eu sempre fui. Não virei outra pessoa. Quero dizer que não acho dê pra perceber essa minha anarquia interna! É, porque parece que, por enquanto, aqui dentro, ninguém é de ninguém! Heheh Sem piadinhas!
Acho que tem a ver com o fato de só agora eu estar retomando, de fato, uma vida que ruma pra um padrão, algo mais normal pra minha idade. Na verdade acho que não tem a ver com idade. Essa epopéia não seria normal em nenhuma idade, eu acho. Antes, eu tentava sair, arrumar emprego, mas era tudo mais ou menos. Nunca estava integralmente em nada. Era sempre uma parte querendo viver e a outra apenas sobrevivendo. Só quando eu voltei pra casa, depois do transplante, é que todos os elementos da minha vida “aceitaram” seguir na mesma direção. E essa direção, finalmente, pode ser decidida por mim. E isso é animal! Agora, eu me preocupo com minha recuperação, sim. Mas isso não me impede de nada. Nenhum plano vai ser abortado, ou melhor, sabotado, por algum motivo triste. Eu posso não conseguir aquele emprego tal, mas vai ser por um motivo saudável: não me encaixei no perfil. Não porque tenho que ficar quatorze horas preso a um lance de nutrição.
Era com isso que eu sonhava a muito tempo: frustrações normais, daquelas das quais a vida de qualquer um é feita. Sério, até disso eu sentia falta. Eu ficava pensando que seria muito bom poder me chatear com um não em uma entrevista, uma cerveja quente, um arroz empapado, uma fila de banco, uma vontade de comer alguma coisa e não saber o que... Enfim, não que eu sublime qualquer problema por ter passado por essa epopéia. Eu me irrito sim, claro. Agora mesmo, por exemplo, acabei de pegar um puta trânsito na marginal as 18h. Sem noção! Mas, pelo menos, eu posso comentar com alguém “nossa, sem noção esse trânsito, né!” E, percebendo ou não, faz bem desabafar, é como se você estivesse compartilhando um problema com a pessoa. Agora, com quem eu vou comentar sobre como é chato esvaziar uma bolsa, que sai de um buraco do estômago, dez vezes por noite!
Além das dificuldades dos momentos em si, eu me sentia meio que um ET em relação a todo mundo. Dava uma sensação estranha. Era difícil ser tão diferente por fora, porque por dentro eu ainda tinha os mesmos anseios e medos. Só que eram desvirtuados por tanta barbárie que acontecia no meu corpo. Os problemas que todos têm, eu também tinha, mas não tinha tempo pra tê-los, na verdade.
E, ao mesmo tempo que eu não podia compatilhar com ninguém essas dores, eu também não queria passar as pessoas todo o sofrimento que era. Não por que eu sou super legal! Mas porque não adiantaria nada. Do que me serviria descrever detalhadamente tudo o que eu sentia de ruim, se ninguém tinha como entender? E outra, imagina alguém que você gosta te falando que não agüenta mais, que está muito difícil isso, e aquilo, e aquilo outro... Você vai ficar super mal, né! E, de mal, já bastava eu. Ao meu lado eu queria gente pra cima, com uma energia diferente da minha. Claro que não era sempre que eu conseguia. As vezes eu chorava, desabafava, xingava. Mas acho que eu fazia pouco, isso. Até porque, se eu fosse fazer toda vez que sentia, ia ser insuportável ficar ao meu lado! Ou seja, eu evitava isso, em primeiro lugar, por mim. Era muito ruim ver as pessoas sofrerem por minha causa. Gerava todo um ambiente muito pesado! Mas, por algumas vezes, eu acabei tendo problemas por causa disso. Sentia algum sintoma, mas ficava quieto. Não queria que ouvissem o alarme da bomba-relógio que vivia dentro de mim. Eu sabia que acabaria com qualquer momento minimamente agradável que estivesse rolando. E também, porque, dependendo do que eu estivesse sentindo – se não fosse algo “dentro das expectativas para o meu caso”, como bolsa ardendo, e outras coisas que eram mais do dia a dia – eu tinha que correr pro hospital. E eu estava de saco cheio disso. Como num sábado a noite que fui com a Jack ao cinema. Quando terminou a sessão, eu estava com tanta dor, por ter ficado sentado por mais de duas horas, que a gente foi direto ao Sírio pra eu tomar uma dose barbárie de morfina! Olha só que forma mais romântica de terminar uma noite de sábado com sua namorada! Imagina como a Jack ficou!
Eu sempre me senti muito mal por isso. Não era só o meu sofrimento. Era esse sofrimento das pessoas que eu amava causado por mim! A dor meio que reverberava em minha volta. Aliás, precisei de muita terapia pra lidar com essa culpa que eu sentia. Eu trabalhei muito minha cabeça pra conseguir não sofrer pela minha dor e pela dos outros. Não fui totalmente bem sucedido. Mas acho que consegui aliviar um pouco. Concluí que, assim como isso aconteceu na minha vida, aconteceu, de outra forma, na vida das outras pessoas também. O que eu tinha que lidar era com o meu sofrimento, o que eu sentia. E as pessoas tinham que lidar com o delas. Por exemplo: era muito difícil ver minha mãe passando por isso. Mas, por algum motivo, na vida dela aconteceu de ela ter um filho que quase morreu. Assim como, na minha vida, aconteceu de eu ter quase morrido. São dores diferentes, que, sem querer ser egoísta, cada um tem que lidar com a sua. Por mais que ela tentasse, não tinha como sentir a minha dor no meu lugar. E vice-versa. Ambos tentávamos aliviar a dor do outro. Mas não tinha como. Cabe apenas a mim entender porque tive que passar por isso. E apenas a ela, entender a sua experiência, também. Bom, mas isso é no papel. O difícil era por na prática essa “divisão de tarefas”. Na realidade, era uma bagunça na minha cabeça, difícil de organizar.
Mas esse lance de eu estar mais caseiro, acho que ainda tem muito a ver com o processo de recuperação. É claro que estou bem mais fraco. Ainda falta uns 10 quilos pra eu voltar ao peso no qual me sinto confortável. Mas estou no caminho, fazendo fisio e indo a nutricionista. Cuido também da cabeça, com terapia toda semana. Acho que só quando eu estiver zerado, com as condições que eu considero ideais pra mim, que eu poderei ter uma noção do que realmente mudou aqui no meu universo.
Ah, e agora vou por uma foto da Vovó Silvia com o seu netinho Cauê! É, meu sobrinho chama Cauê Consonni Gordon! É escocês, mas seu nome é bem brasileiro, de origem Tupi. Significa “homem bondoso que age com inteligência”. Legal, né? Esse moleque promete, viu!
Beijos
Vovó conhecendo o netinho! |